segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Quando a fé é a serpente: 'Aqui Embaixo', um filme do Festival Varilux de Cinema Francês.

Estamos em 1919. Uma garotinha de expressivos olhos azuis brinca com a irmã em um cenário bucólico da comuna de Bergerac, em Dordogne. O pároco da região chega para uma visita e a garotinha o observa, enlevada, atirando-se para receber seu abraço. Após beijar o crucifixo do religioso, a menina lhe pede uma das imagens que estão entre as páginas de sua Bíblia – provavelmente, a imagem de algum santo. Aí já se prenuncia a vocação religiosa da garota. Seu nome é Luce. E o filme chama-se Aqui Embaixo (Ici-bas, 1h40', 2012), dirigido por Jean-Pierre Denis.


Salto para 1943. Luce (Céline Sallette) agora é uma jovem freira, enfermeira, e cuida dos feridos em um hospital de Périgueux, sob a ocupação alemã, na II Guerra Mundial. É uma religiosa exemplar, devotada e detentora de uma fé inabalável. Até que, certo dia, é chamada pelo doutor para cuidar de um capelão ferido – seu nome é Martial (Eric Caravaca). O homem, que faz parte da resistência francesa, tem sua fé abalada e está fortemente inclinado a abandonar a vida religiosa. Por algum motivo misterioso, Irmã Luce sente-se atraída por esse paciente, algo que nunca havia lhe acontecido antes. Sem entender direito o que está havendo, a freira tenta lutar contra esse sentimento com todas as forças, mas é em vão. O capelão recupera a saúde, mas em nenhum momento dá sinais de reciprocidade em relação ao amor de Luce.


Pouco depois, Martial é chamado por seus camaradas da resistência para uma missão em Bergerac. Ao mesmo tempo, a madre superiora, preocupada com o ar distante e disperso de sua pupila, concede-lhe três dias de licença para que possa descansar e rever sua família em... Bergerac. Luce interpreta essa coincidência geográfica como um sinal divino de que seu sentimento teria eco e que deveria ir atrás de seu amor. Só que, muitas vezes, aquilo que interpretamos como "sinal divino" ou "conspiração do universo" – Jung que me perdoe! - nada mais é do que uma simples coincidência ou o próprio universo nos pregando uma peça.

Luce vai atrás do homem e, como seria de se esperar, não recebe nenhuma palavra, nenhum gesto de carinho, nenhum sinal de amor. Na crença cega de sua fé, no entanto, é incapaz de enxergar a gélida indiferença de Martial. O homem chega a lhe afirmar que ela não deveria esperar nada dele, mas, mesmo assim, num ímpeto bestial de extrema brutalidade, praticamente estupra a freira. Tira sua virgindade de repente, sem seu consentimento, a seco, do nada. Luce, por sua vez, continua a acreditar piamente que uma espécie de "amor" os une e que estão predestinados um ao outro. Contra todas as evidências, acredita que o homem possa vir a amá-la simplesmente porque ELA é capaz de amá-lo verdadeiramente. E assim a mulher vai se autoludibriando, recusando-se a enxergar a verdade. É de partir o coração.

Irmã Luce (Céline Sallette) e Martial (Eric Caravaca).

Uma vez que esse sentimento vai contra os dogmas de sua vocação religiosa, Luce acaba por abandonar o convento e suas Irmãs para ir atrás do homem. Ao chegar até onde ele está, subitamente o vê através de uma vidraça, num gesto de carinho que prenuncia um ato de amor para com uma de suas companheiras da resistência. Chocada, ferida e destruída em suas convicções, a freira sente-se abandonada pelos homens e, o que é pior, traída por seu Deus, precipitando-se para a autodestruição.

Exibido no Festival Varilux de Cinema Francês, Aqui Embaixo é um filme perturbador. Sim, porque a humanidade tem fé. Aliás, eu diria que a humanidade "precisa" ter fé para suportar sua existência. Fé em Deus, em alguma crença, em algo superior. E incomoda profundamente constatar que a fé pode facilmente perder a razão, sobretudo se essa perda for vivenciada por uma religiosa tão segura de suas convicções e de sua vocação. Irmã Luce era uma criatura pura, genuinamente boa, devotada a Deus e a fazer o bem. Nunca havia experimentado o amor de um homem. Não pertencia a esse mundo. Porém, por alguma razão, julgou que o novo sentimento que passou subitamente a nutrir por um desconhecido fosse esse tal "amor". No entanto, a freira mal conhecia o homem. Com base em que julgou amá-lo e ser amada, a não ser por sua fantasia?


Esse filme me levou a refletir sobre a tendência que certas pessoas têm de idealizar um amor, um sentimento e, sobretudo, uma outra pessoa, muitas vezes sem sequer conhecê-la direito. Posso até estar errada, mas eu tenho, cá comigo, que o amor é um sentimento muito simples. Não vem acompanhado de sofrimento. Amor se sente, se reconhece e, sobretudo, não provoca dor nem tormento. Amor de verdade traz paz de espírito, alegria e, sobretudo, aquela sensação aconchegante de nunca estarmos sozinhos, de sabermos que o outro sempre estará lá para compartilhar conosco os momentos bons e de nos consolar naqueles que não são tão bons assim. Nada a ver com aquilo que Irmã Luce julgou sentir no filme. Amor verdadeiro existe? Sim, claro que existe! Mas está longe das falsas ilusões ou fantasias. O amor verdadeiro é 'pé-no-chão' e deliciosamente real.

AQUI EMBAIXO é um filme dramático, bem construído, e a atriz Céline Sallette é simplesmente maravilhosa em sua interpretação de Irmã Luce. O filme faz parte do Festival Varilux de Cinema Francês e, se você quiser conferir, a próxima (e última) exibição será no Cine Livraria Cultura, dia 23/8 (quinta-feira), às 13h30. O horário é ingrato, mas vale a pena dar uma escapada no almoço!

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