domingo, 2 de setembro de 2012

'Luis Antonio Gabriela’. Um mix real e barra-pesada de Almodóvar com Nelson Rodrigues.

Essa peça está no topo da lista das recomendadas pela Vejinha. Já havia estado em cartaz em São Paulo, recebeu o Prêmio APCA como melhor espetáculo teatral do ano passado e agora está sendo reencenada. Como a temática havia me interessado já na outra vez, fui conferir. Até agora não sei dizer se gostei ou não. O que sei é que Luis Antonio Grabriela me chocou bastante. Caracterizada como "documentário cênico", a peça concebida por Nelson Baskerville com coautoria de Verônica Gentilin e da Cia. Mungunzá de Teatro é, na verdade, um grande pedido de desculpas do autor a seu irmão Luis Antonio - o "Gabriela" – já falecido. Fiquei com a impressão de que a encenação é, na realidade, uma grande catarse, uma tentativa desesperada de Nelson para expurgar um passado que, suspeito, continua a assombrá-lo até os dias de hoje.

Mas do que trata esse "passado"? Bem, Nelson nasceu em Santos, em 1961, filho de um advogado bem-sucedido. Tinha mais cinco irmãos e sua mãe faleceu ao concebê-lo, durante o parto. Por isso, seu aniversário, 1º de setembro (ontem!) nunca foi comemorado em casa. Ninguém falava no assunto e o pobrezinho do menino, que não tinha culpa alguma, ficava sem bolo e sem velinhas. Por aí já dá para ver que, em termos de relações humanas, o pai não era lá essas coisas. Quando Nelson tinha cerca de dois anos de idade, o homem casou-se novamente com uma viúva que tinha três filhos. A família ficou enorme e as brigas eram constantes. Não raro, o casal viajava para a Europa e deixava as crianças sabe-se lá com quem. Não é preciso ser especialista para perceber que pai e madrasta não eram exatamente as figuras mais amorosas e responsáveis do mundo.

O ator Marcos Felipe, que interpreta
Luis Antonio 'Gabriela'.

Nelson tinha um irmão quase dez anos mais velho: Luis Antonio. Dizem que, certo dia, seu pai chegou em casa com aquela criança, ainda bebê, afirmando tê-la adotado. Desde pequeno, Luis Antonio manifestava trejeitos e gostos de menina, deixando patente sua homossexualidade. Por causa disso, apanhou muito do pai, e com uma violência absurdamente irracional. Em tempos de ditadura, chegou inclusive a parar na delegacia por sua "conduta imoral". Naqueles repressivos anos 60, a família era apontada na rua como "a família do sem-vergonha", do "pervertido". No entanto, Luis Antonio nunca guardou mágoa do pai. Sempre se mostrou doce e alegre, apesar das surras homéricas que levou em casa e das humilhações que sofrera. A condição homossexual devia ser muito triste naqueles tempos.

Verônica Gentilin interpreta Nelson Baskerville.

Já adolescente, Luis Antonio abusou sexualmente do irmão Nelson, que contava, então, com apenas seis ou sete anos de idade. A peça revela, aliás, que o menino tinha o hábito de molestar crianças pequenas. Não sabemos se ele tinha noção da dimensão ou da gravidade desse tipo de ato, mas, como seria de se esperar, sua vítima, Nelson, nunca mais iria se esquecer do episódio. Talvez isso explique por que, mais tarde, nunca mais faria questão de se aproximar do irmão.

A cenografia causa estranhamento.

Ainda jovem, Luis Antonio começou a se vestir de mulher. Saiu de casa e foi morar numa república de travestis, em Santos, adotando o nome de "Gabriela". Até o dia em que se mudou para a cidade de Bilbao, na Espanha, e nunca mais voltou. Um hiato de quase trinta anos separou-o da família, que o perdeu de vista.

Até que, no início dos anos 2000, surgiu o boato de que Luis Antonio havia morrido. A família, alarmada, entrou em contato com o Consulado da Espanha e foi atrás de notícias suas para saber o que havia ocorrido. Descobriu-se, então, que Luis Antonio estava vivo. A irmã Maria Cristina foi encontrá-lo na Espanha e viu que ele havia vivido como uma verdadeira estrela nas noites de Bilbao, brilhando com seu show de travestis. Ganhou muito dinheiro, teve vários amantes, mas também levava uma vida de excessos, com muita bebida e muitas drogas. Maria Cristina descobriu, também, seu apelido: "Bolota", por causa das bolas disformes que o silicone industrial, injetado pelo travesti, havia formado em seu corpo. (Aliás, é deprimente ver a automutilação que tantos travestis cometem contra si mesmos, injetando silicone líquido em seus corpos. Será que a vontade de ser mulher é tão grande que eles ficam cegos para o fato de que essa prática criminosa os transforma em figuras grotescas, além de trazer complicações imensuráveis para a saúde? Enfim...) Maria Cristina impressionou-se, também, com a semelhança entre Luis Antonio e sua avó paterna, reforçando a suspeita de que ele fosse, mesmo, filho biológico de seu pai. Tudo indica que o menino era fruto de um caso amoroso do pai, que havia traído a esposa com uma mulata.

Aquilo que já representa um drama no século XXI devia ser uma tragédia nos anos 60!

Quando a irmã foi a seu encontro na Espanha, porém, Luis Antonio deu-se conta de que não estava sozinho. Sentiu ainda ter uma família, mesmo que longe. Veio a falecer em 2006, aos 53 anos, em decorrência de uma encefalopatia hepática. Maria Cristina estava a seu lado. Pouco antes, já doente, havia manifestado o desejo de retornar ao Brasil, mas a irmã dissuadiu-o da ideia porque, aqui, ele não teria condições de receber o mesmo tratamento médico e os cuidados que estava recebendo na Espanha.

O verdadeiro Luis Antonio, em foto do passaporte.
Nelson compreendeu que, à época em que tudo aconteceu, no Brasil, ninguém soube lidar com Luis Antonio. Fica claro que o pai, embora detentor de certa cultura, era um homem bruto, com uma visão estreita e preconceituosa da vida. A madrasta, pode-se dizer, era aquilo que chamamos de "cuca fresca": se não conseguia dar conta de seus próprios filhos, o que dizer, então, dos filhos dos outros? Vê-se, hoje, que Luis Antonio poderia ter conduzido sua vida de forma diferente, se tivesse recebido apoio e carinho da família. Poderia ter vivido sua homossexualidade de maneira mais saudável, sem automutilar-se com injeções de silicone e sem entregar-se aos excessos.

Um dado curioso: na peça é dito que, nos anos 60, os gays que não se caracterizassem como mulheres não eram procurados pelos outros homens. Naquela época eu ainda não existia, mas, pelo que parece, tudo era muito compartimentado, maniqueísta. Homem gay tinha que ser "mulherzinha" e, provavelmente, mulher gay tinha que ser "machona". Ou seja: devia ser tudo ou preto ou branco, e esqueciam-se as múltiplas variações de cinza no meio do caminho.


A peça é formada por recortes de depoimentos do próprio Luis Antonio, da irmã Maria Cristina, da madrasta e outros. Para isso, foi levantada farta documentação de Luis Antonio "Gabriela", incluindo cartas da irmã e do pai e até seu álbum de bebê. Nelson é representado por uma atriz, Verônica Gentilin, que também participou da montagem. Luis Antonio é interpretado por Marcos Felipe, também um excelente ator.

A cenografia, fora do convencional e propositalmente feia, integra elementos como bolsas de soro pendendo do teto, cadeiras plásticas e objetos cenográficos áridos a projeções de vídeos e letreiros eletrônicos. Tudo isso gera uma sensação de estranhamento e até de repulsa, certamente para aguçar, no espectador, a percepção do drama de seus personagens reais.

Se você quiser ir, prepare-se. A peça é forte e dá o que pensar. LUIS ANTONIO GABRIELA está em cartaz no Teatro João Caetano – Rua Borges Lagoa, 650 – V. Clementino – tel.: 3083-4475. Quinta a sábado: 21h. Domingo: 19h. O preço do ingresso é R$ 20,00.

Em tempo: parabéns, Nelson! Feliz aniversário! 

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