sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Renato Brolezzi desvenda Poussin, o mestre do detalhe além do mito.

Um homem atormentado. Estudioso. Cuidadoso. Detalhista ao extremo. Assim era o pintor francês Nicolas Poussin (Les Andelys, 1594 - Roma, 1665) em relação a seu processo de criação. Isso, entre outras coisas, é o que descobri em mais uma excelente aula ministrada pelo Prof. Renato Brolezzi no MASP. Não é a primeira vez, aliás, que menciono neste blog as aulas desse mestre que consegue aliar uma erudição incrível a uma leveza e um bom humor impressionantes. E não é por acaso que todas as suas aulas no Grande Auditório do MASP fiquem completamente lotadas e, não raro, faltem lugares para sentar.

Desta vez, a obra analisada foi 'Hymenaeus travestido durante um sacrifício a Príapo' ou 'Himeneu assistindo a uma dança floral em homenagem a Príapo', um imenso óleo sobre tela de Poussin que pertence ao MASP, mede 1,67 m X 3,76 m e foi pintado, provavelmente, entre 1634 e 1638.

Poussin - 'Himeneu travestido durante um sacrifício a Príapo' (c. 1634-1638) - acervo do MASP.

Mas antes de analisarmos a pintura, vamos falar um pouco de quem a pintou: Nicolas Poussin. Embora tenha nascido na França, Poussin não gostava de Paris: era apaixonado por Roma, cidade rica e culta que adotou para viver a maior parte da vida. Sabe-se que, em 1623, o artista já estava na cidade. Ao chegar lá, enfrentou inúmeras dificuldades, mas conseguiu travar relacionamento com homens importantes. Um deles foi o poeta Giambattista Marino, que o apresentou a grandes aristocratas romanos que passaram a encomendar suas pinturas. Sabe-se que Poussin conheceu o grande escultor Lorenzo Bernini e pertenceu à Academia de San Lucas. Dois teóricos da época são grandes fontes de informação sobre seu trabalho: André Philibien e Gian Pietro Bellori, este último também pintor e seu amigo. Apesar de toda a glória, contudo, o prof. Brolezzi contou-nos que o artista sofreu muito, teve muitas perdas, doenças e infelicidades.

Dois nobres, em especial, foram grandes compradores de Poussin em Roma: Cassiano dal Pozzo e Francesco Barberini, este último sobrinho e braço direito do papa Urbano VIII (pró-francês), que sucedeu Inocêncio X (pró-espanhol). A título de curiosidade, vale dizer que vários palácios do séc. XVII têm abelhas em seus ornamentos decorativos, pois os insetos faziam parte do emblema da poderosa família Barberini.

O cardeal Richelieu também requisitou muito os serviços do artista em Paris. Quando Luís XIV e seu primeiro-ministro Colbert criaram a Academia Real de Belas Artes, em 1652, Poussin foi convidado a ser seu primeiro presidente, mas recusou o convite por não querer abandonar Roma. Sim, Poussin é a primeira criatura de que tenho conhecimento que não gostava de Paris!

Retrato do artista (1650) - pintado por Paul Fréart de Chantelou, amigo e admirador de Poussin.
Atrás da pintura, há duas figuras alegóricas: a 'Pintura' e os braços da 'Amizade' que a apoia.

Esta pintura está no Museu do Louvre, Paris.

Agora vamos ao quadro. Quem não conhece mitologia pode até achar 'Hymenaeus travestido durante um sacrifício a Príapo' bonito ao contemplá-lo, mas certamente não irá entendê-lo. Por isso, faz-se necessário – e isso o Prof. Brolezzi faz muito bem – "traduzirmos" a pintura.

Príapo, na mitologia greco-romana, era filho de Vênus e Baco (ou Afrodite e Dionísio, como também são conhecidos). Feio, barbudo e com um enorme falo, era considerado o 'Deus da Fertilidade'. Segundo consta, na Grécia antiga, as jovens prestes a se casar costumavam dançar em torno de uma herma (estátua de meio-corpo) com a imagem do deus, a fim de atrair uma boa vida sexual e muitos filhos. É uma dessas cenas que retrata a pintura.

Detalhe: na extrema direita do quadro, há um jovem travestido chamado Himeneu. Note que é a única figura a calçar sandálias. Himeneu era apaixonado por uma das dançarinas e se travestiu de mulher para poder assistir à dança, porque o deus Príapo não permitia homens em sua presença, infligindo castigos terríveis àqueles que o desobedecessem. Enquanto Príapo assistia disfarçado a sua amada dançar, surgiu um bando de salteadores que queriam raptar e estuprar as jovens. Himeneu, que trazia uma espada escondida sob as vestes, puxou-a imediatamente, e os ladrões, achando que haveria mais soldados travestidos e camuflados entre as moças, fugiram assustados. Neste caso, ao invés de castigá-lo, Príapo encheu o jovem de honrarias. Daí o surgimento da palavra "hímen", quem diria... o "protetor das donzelas"! Você sabia disso? Eu não!

Note que, à esquerda do quadro, há algumas jovens tocando instrumentos musicais da Grécia Antiga. Esses instrumentos foram cuidadosamente estudados por Poussin em coleções particulares de aristocratas de seu tempo. Vale repetir que tudo em Poussin era estudado, analítico e seu processo de criação era bem demorado. Basta dizer que, antes de pintar suas figuras, ele costumava criar pequenas esculturas em terracota e só depois transferia as imagens para a tela.

Admirador de Rafael, primeiro pintor a criar tipologias teatrais, Poussin também apresentava um estilo pictórico teatral, geometrizado, com poses estudadas. As cores primárias, vermelho, amarelo e azul, ganhavam destaque especial em suas pinturas. Veja também que, no quadro que estamos analisando, não há profundidade e nem perspectiva: ele foi concebido como se fosse uma frisa, um relevo. E as figuras, com suas poses coreografadas, parecem estátuas.

Uma curiosidade: o título da obra foi alterado em 2009, o 'Ano da França no Brasil', quando a pintura foi restaurada pela equipe do Palácio de Versalhes. Em virtude da precariedade do quadro à época, ele não pôde ser despachado para a França: os restauradores franceses é que vieram para cá executar o trabalho, em uma missão que durou mais de cinco meses. Depois da restauração, foi revelado o desenho do enorme falo de Príapo, que estava pudicamente oculto por camadas de tinta. O deus deve ter ficado feliz com a revelação de seu avantajado dote natural! (rs).

Aqui, o detalhe do falo que foi revelado após a restauração pela equipe francesa.

A pintura da dança em torno de Príapo foi provavelmente adquirida junto de outro quadro do artista, denominado 'A Caça de Atalanta e Meleagro', atualmente no Museu do Prado, em Madri. Essa pintura retrata uma cena da mitologia grega citada nas 'Metamorfoses', de Ovídio: a vingança da deusa da Caça Diana (Ártemis) contra o cavaleiro Meleagro. As duas obras foram criadas sob encomenda de Francesco Barberini para que a França as presenteasse ao rei Filipe IV da Espanha, como um gesto de diplomacia, já que pairava uma certa rivalidade entre as duas nações ricas, porém culturalmente opostas.

Poussin - 'A Caça de Atalanta e Meleagro' (1634-1639) - Museu do Prado, Madri.

Ao longo da vida, Poussin fez muitas imagens de bacanais e danças em homenagem a deusas. Por vezes, misturava os personagens e mitos numa mesma obra.

Poussin - 'Bacanal com tocadora de alaúde' (c. 1626-1628) - Museu do Louvre, Paris.

Poussin - 'O Triunfo de Flora' (c. 1627-1628) - Museu do Louvre, Paris
Obs.: Flora era a 'Mãe das Plantas', na mitologia grega.

A tela abaixo, 'O Triunfo de Anfitrite', faz parte de quatro pinturas com temas náuticos que Poussin pintou sob encomenda do cardeal Richelieu. Na mitologia grega, Anfitrite era uma das filhas de Netuno, o deus dos Mares.

Poussin - 'O Triunfo de Netuno e Amphitrite' (c. 1637)

Poussin também retratou temas bíblicos, como na impressionante pintura 'O Martírio de Santo Erasmo'. Nessa terrível cena, os intestinos do santo são arrancados e amarrados a um carretel. Daí São Erasmo tornar-se o protetor dos alfaiates e marinheiros. No alto do quadro, à direita, vemos uma figurinha em forma de estátua que destoa das demais: era Hércules, símbolo da força física e moral, como se estivesse lá para encorajar o santo.

Poussin - 'O Martírio de Santo Erasmo' (1629)

A obra abaixo, 'O Massacre dos Inocentes', mostra um soldado romano prestes a assassinar uma criança a mando do rei Herodes. Trata-se de uma cena teatral de grande sofrimento, com altíssima carga dramática.

Poussin - 'O Massacre dos Inocentes' (c. 1625-1629)
Condé Musée, Chantilly, França.

A próxima pintura, 'A Morte de Germanicus', foi encomendada por Barberini. Germanicus foi um general da antiga Roma, aliado do imperador Claudio, que venceu os bárbaros alemães. Quando seria nomeado sucessor de Claudio, foi envenenado por Nero, que tomou seu lugar. Do lado direto da tela, vemos a esposa e os filhos do herói agonizante.

Poussin - 'A Morte de Germanicus' (1627)

Perto da morte, Poussin pintou muitas paisagens alegóricas. Em 'Orfeu e Eurídice', vemos o momento em que, de acordo com a mitologia, uma cobra pica Eurídice quando ela está prestes a se casar com Orfeu. Eurídice morre e vai para o Hades. O apaixonado Orfeu, contudo, consegue permissão da deusa do Hades para buscar sua amada, mas com uma condição: não poderia olhar para trás sob hipótese alguma. Orfeu não resiste, dá uma olhadinha em Eurídice, e o pior acontece: Eurídice desaparece e Orfeu ainda é atacado e estraçalhado por um grupo de jovens que passam por ali em uma bacanal. A fumaça no famoso castelo romano de Sant'Angelo, ao fundo do quadro, é um sinal de mau presságio.

Poussin - 'Orfeu e Eurídice' (c. 1650-1653) - Museu do Louvre, Paris

A próxima pintura, 'Dança das Horas', é uma alegoria sobre a impermanência do ser. As quatro figuras que dançam de mãos dadas representam as 4 estações do ano. À esquerda, vemos uma herma em que a cabeça de um jovem está de costas para a cabeça de um velho. O bebê com as bolas de sabão, abaixo, simboliza a fragilidade do tempo. 

Poussin - 'A Dança das Horas' (1634-1636) - Wallace Collection - Londres

Se você também fica fascinado(a) com a simbologia existente por trás das pinturas, o próximo curso do prof. Renato Brolezzi será dia 14 de setembro, das 11h às 13h, no Grande Auditório do MASP. Vale a pena assistir!

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