quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Renato Brolezzi apresenta Ingres, o neoclássico com alma romântica.

Já perdi a conta de quanto tempo faz que assisto às aulas do prof. Renato Brolezzi no MASP. Só sei que comecei a frequentá-las quando ainda cursava pós-graduação em História da Arte, e isso deve fazer uns sete ou oito anos. E novamente lá fui eu, desta vez para uma aula sobre Jean Auguste Dominique Ingres (Montauban, 1780-Paris, 1867), na qual analisamos mais uma pintura pertencente ao maravilhoso acervo do MASP, 'Angélica Acorrentada'.

Ingres - 'Angélica Acorrentada' (1859), a tela do MASP.

Não se sabe ao certo a data de execução da obra, mas sabemos que ela não é "filha única": tem "irmãzinhas" em outros museus do mundo. A versão do MASP, apesar de estar quase 100% acabada, é na verdade um esboço para outro quadro que está no Museu do Louvre, de 1819. Há também uma versão na National Gallery, em Londres, e outro esboço no Castelo Condé, em Chantilly.

Mas quem seria a pobre 'Angélica' que está acorrentada a uma colina e, ainda por cima, completamente nua? Vamos lá. A obra é baseada no poema maneirista de Ludovico Ariosto, 'Orlando Furioso', em que o herói Rogério mata um monstro marinho para libertar a donzela Angélica com o auxílio de um escudo mágico que emite uma luz mortal. Segundo o poema, apenas quem portasse um anel encantado ficaria imune ao poder de destruição da luz. Por isso, Rogério deu à jovem o anel para protegê-la, antes de se aproximar montado em um ser mitológico chamado 'hipogrifo' - híbrido de cavalo, águia e dragão – e matar a criatura que a ameaçava. Note que, na pintura, Angélica porta o anel mágico que ganhou do herói. 

Ingres - 'Rogério libertando Angélica' (1819), versão que está no Louvre.
Um detalhe importante é que apenas a versão do MASP é fiel ao poema de Ariosto, deixando claro que a criatura marinha foi dizimada pela luz do escudo mágico. Nas pinturas do Louvre e da National Gallery, no entanto, Rogério mata a fera com uma lança - e não com o escudo.

Agora vamos falar um pouco do autor dessa obra-prima. Sabemos que Ingres tocava violino antes de se tornar pintor e que chegou a Paris em 1797. Lá, estudou no ateliê do clássico Jacques-Louis David (1748-1825), presidente da Académie Française. Consta que, pelo ateliê de David, circularam mais de 1.300 alunos.

Ingres - 'Autorretrato aos 24 anos' (1804)

Ingres, contudo, não gostava de Paris e, tão logo teve a oportunidade, mudou-se para Roma e lá fez fama, permanecendo na cidade por longos anos. Conquistou mecenas como Caroline Murat e tornou-se amigo dos poderosos. Em 1801, ganhou o Grande Prêmio de Roma de Pintura Histórica com a obra 'Aquiles recebendo os Embaixadores de Agamenon' e ficou quatro anos por lá a partir de 1806. Em 1834, se tornaria o diretor da Academia Francesa naquela cidade.

'Aquiles recebendo os embaixadores de Agamenon' (1801), obra com a qual Ingres conquistou o Prêmio de Roma.

Vale lembrar que, àquela época, os franceses dominavam Roma politicamente e Ingres era bonapartista, tendo pintado alguns retratos de Napoleão. Detalhe curioso: Napoleão sofria de dores terríveis no estômago, motivo pelo qual é sempre retratado com uma das mãos sobre o órgão. Posteriormente, descobriu-se que ele sofria de um câncer de estômago... e àquela época não havia quimioterapia! Pobre Napoleão.

Ingres - 'Bonaparte, primeiro cônsul' (1801) - ao fundo está a cidade de Liège.

Ingres - 'Napoleão no trono imperial' (1811) - a perfeição das
texturas 
é impressionante! Quase podemos sentir o veludo vermelho.

Obsessivo, extremamente meticuloso e perfeccionista em suas pinturas, Ingres era capaz de levar meses ou mesmo anos para terminar um quadro. Nunca estava satisfeito e, vira e mexe, só entregava uma encomenda quando considerasse a pintura acabada. Todo esse zelo estava a serviço da linha e dos detalhes, que o mestre procurava depurar à obsessão. É curioso como ele alongava anormalmente suas figuras, criando pescoços e membros inverossímeis, a fim de "corrigir os defeitos da natureza" e criar um equilíbrio só seu. Para ele, não interessava reproduzir fielmente a anatomia, mas somente sua ideia de perfeição dos traços. Braços e pernas enormes, pescoços compridos e gorduchos e modelos com costelas sobrando são liberdades que Ingres se permitiu com frequência. Repare no pescoço exagerado de Angélica na pintura do MASP, por exemplo. Um outro exemplo famoso é a pintura abaixo, de 1808, na qual Ingres retrata uma jovem banhista da família Valpinçon, família de colecionadores também próxima a Degas. Note o dorso anormalmente longo da mulher. Do mesmo ano é a pintura 'Édipo e a Esfinge', uma entre as dezenas de obras com temas mitológicos criadas pelo mestre.

Ingres - 'A Banhista Valpinçon' (1808)

Ingres - 'Édipo e a Esfinge' (1808)
Situado a meio caminho entre o neoclássico e o romântico, segundo o prof. Brolezzi, Ingres não pode ser considerado um clássico absoluto, embora suas pinturas sejam inspiradas na estatuária greco-romana (Ingres colecionava peças arqueológicas) e sua temática seja frequentemente clássica. A liberalidade que expressava no desenho, contudo, o distanciava dos clássicos canônicos e o aproximava do romantismo. Na obra abaixo, 'Júpiter e Tétis', pintada no ano de 1811 em Roma, note as dimensões exageradas do pescoço de Tétis.

Segundo a mitologia grega, Tétis era mãe do herói Aquiles. Naqueles tempos, as mulheres tinham muitos filhos, mas Tétis só conseguiu gerar um. E tinha tanto medo de perdê-lo que implorou aos deuses para que protegessem o filho. Obteve, então, permissão para banhar o bebê Aquiles no rio mágico de Hades. Segundo a lenda, todas as partes do corpo que tivessem contato com as águas do rio ficariam invulneráveis. Como Tétis pegou o bebê pelo calcanhar ao banhá-lo no rio, somente essa parte do corpo, o calcanhar, ficou desprotegida - daí a expressão "calcanhar de Aquiles". Vivendo e aprendendo! 

Ingres - 'Júpiter e Tétis'  (1811) - nesta pintura, Tétis tenta seduzir o deus Júpiter para evitar
que seu filho Aquiles seja morto.

Pintura de um aluno de Ingres, Jean Alaux, retratando
o mestre em seu ateliê em Roma (1814). Em primeiro plano,
está Madeleine Chapelle.

No ano de 1813, Ingres casou-se em Roma com Madeleine Chapelle, o grande amor de sua vida, e consta que foi muito feliz. Em 1856, Madeleine faleceu e o mestre casou-se novamente.

Em 1820, Ingres foi para Florença. Poucos anos mais tarde, em 1824, fez uma grande exposição em Paris e foi reconhecido definitivamente. No entanto, só retornou a essa cidade em 1841, lá permanecendo até o final da vida.

Criada em 1814 e exposta em 1819, 'A Grande Odalisca' é uma das mais célebres obras de Ingres.

Na pintura a seguir, 'A Apoteose de Homero', Ingres presta uma homenagem aos grandes mestres clássicos das letras, das artes e do teatro. Ao centro, está o próprio poeta Homero ladeado por Ilíada e Odisseia, sentadas no degrau. À sua direita, estão mestres clássicos antigos, como Corneille, Racine, Diderot etc., e à esquerda estão os mais "modernos", como o pintor Poussin (de negro, em primeiro plano), entre outros.

Ingres - 'A Apoteose a Homero' (1827)

Ingres também tornou-se muito solicitado como retratista e tornou-se conhecido por sua grande habilidade em retratar grandes damas, como atesta a belíssima pintura abaixo, que mostra a jovem Condessa de Haussonville, sobrinha da famosa escritora Mme. de Stäel.

Ingres - 'A Condessa Rebelde' (1845)

Já o próximo retrato mostra Louis-François Bertin, um bem-sucedido empresário burguês, dono de um jornal e de outros negócios. Vale ressaltar que, àquela época, a gordura masculina era sinal de boa nutrição, riqueza e prosperidade. Não por acaso, suas mãos parecem as garras de uma águia prestes a levantar voo, como se Ingres quisesse retratar a agressividade do senhor capitalista. 

Ingres - 'Retrato de Louis-François Bertin (1832)

A tela 'O Banho Turco', criada quando o mestre já contava 82 anos, mostra a atmosfera de lascívia predominante em um harém turco e é uma de suas obras mais conhecidas. Vale ressaltar que o Oriente sempre atiçou a imaginação dos europeus do século XIX, que fantasiavam um mundo de prazeres exóticos e belas mulheres.

Ingres - 'O Banho Turco' (1862)

A foto ao lado, tirada por Etienne Cariat (1828-1906) em 1862 – mesmo ano em Ingres criou 'O Banho Turco', mostra um homem excepcionalmente vigoroso para a avançada idade de 82 anos.

Ingres era sem dúvida um grande mestre, e vale a pena dar um pulo no MASP para conferir de perto sua 'Angélica Acorrentada'. E se você se interessa por história da arte, não perca a próxima aula do Prof. Renato Brolezzi, que será ministrada no dia 9 de novembro (sábado), das 11h às 13h, e tem entrada franca. Ah, o tema será Picasso. Até lá!

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