quinta-feira, 28 de agosto de 2014

'O Homem e seus Símbolos', de Jung. Uma fascinante viagem aos mistérios do inconsciente.

Nos sonhos, uma panela pode não ser só uma panela. Uma mesa pode não ser só uma mesa. E um macaco pode não ser só um macaco. Explico. Quando sonhamos, muitas das imagens que nos aparecem não possuem um significado literal, isto é, simbolizam algo que está além de sua interpretação imediata e oculto em nosso inconsciente. Esse "algo" pode ser uma necessidade, um desejo, uma intuição, uma neurose, um conflito, ou seja, uma gama infindável de coisas que estão lá, escondidinhas dentro de nós, só aguardando uma oportunidade para virem à tona. Isso acontece com frequência nos sonhos, na forma de símbolos. De fato, tudo pode assumir uma significação simbólica: objetos naturais como pedras, árvores, flores etc. ou aqueles fabricados pelo homem. O que ocorre é que, na vida dita "civilizada", sobretudo nas grandes cidades, passamos boa parte do tempo lutando contra o relógio e pela sobrevivência e, com isso, não prestamos atenção nos sinais à nossa volta e muito menos em nossos sonhos. 

Afinal, como os símbolos se manifestam nos sonhos? Em que medida a interpretação dessas imagens oníricas pode contribuir com nosso autoconhecimento, nos ajudar a restaurar o equilíbrio psíquico ou até mesmo a evitar que um desastre aconteça? Como os símbolos aparecem nas artes? As respostas a essas questões, e a muitas outras que na realidade nem sabemos que nos incomodam, estão nos cinco capítulos do livro 'O Homem e seus Símbolos', concebido e organizado por Carl Gustav Jung e publicado pela primeira vez em Londres no ano de 1964. Além de apresentar um capítulo de autoria do próprio Jung, a obra é uma compilação de artigos escritos por renomados colaboradores e estudiosos da mente convidados pelo mestre a dar sua contribuição.

O genial dr. Jung em seu estúdio.

O primeiro capítulo, 'Chegando ao Inconsciente', é aquele escrito por Jung e também o mais longo de todos, no qual ele discursa extensivamente sobre o poder e a carga energética das imagens simbólicas, abrindo caminho para os demais capítulos. É curioso notar como certos símbolos ancestrais, utilizados por nossos antepassados pré-históricos em objetos, esculturas e desenhos nas paredes de cavernas, são recorrentes nos sonhos do homem contemporâneo, levando Jung a concluir que existe um "padrão" simbólico universal que se repete e determinados arquétipos são recorrentes, independentemente de tempo, espaço e cultura. Contudo, a presença de um mesmo símbolo nos sonhos de diferentes pessoas – ex.: um urso - pode apontar para diferentes significados, dependendo da experiência individual de cada um. E essa análise só pode ser feita por um psicanalista, preferencialmente com a ajuda do paciente que anota e descreve diligentemente seus sonhos. Portanto, ao contrário do que vemos por aí, não existem manuais genéricos de "interpretação dos sonhos", e sim indicadores que podem servir como pontos de partida para um estudo mais profundo. 

Pinturas rupestres na famosa caverna de Lascaux, França, carregadas de simbologia.

O segundo capítulo, denominado 'Os Mitos Antigos e o Homem Moderno', é de autoria de Joseph L. Anderson, um dos mais eminentes psicanalistas junguianos dos Estados Unidos, e aprofunda aquilo que Carl Jung chamou de "inconsciente coletivo", mostrando como ele se manifesta de geração para geração por meio de imagens simbólicas, desde épocas ancestrais e em culturas totalmente antagônicas de diferentes pontos do globo. O que explica essa recorrência de visões entre povos tão diferentes que vivem e viveram em períodos históricos diversos? Entre as imagens arquetípicas recorrentes estão os símbolos heroicos, cuja necessidade surge, segundo o dr. Anderson, "quando o ego necessita fortificar-se", isto é, quando o consciente precisa de ajuda para alguma tarefa que não consegue executar sozinho. 

Conceitos como anima, animus e self, este último descrito por Jung como "a totalidade absoluta da psique", são abordados no terceiro capítulo da obra, 'O Processo de Individuação', de autoria da psicóloga suíça Marie-Louise von Franz, talvez a mais íntima amiga e confidente do dr. Jung. As manifestações da "sombra", a simbologia contida em formas geométricas como esferas e, por extensão, nas mandalas, bem como o fenômeno da "sincronicidade", também descrito por Jung, são outros tópicos analisados neste interessantíssimo capítulo.

O quarto capítulo do livro, denominado 'O Simbolismo nas Artes Plásticas' e de autoria de Aniela Jaffé, mostra como tudo pode assumir uma significação simbólica nas artes visuais – desde as pinturas rupestres de nossos antepassados pré-históricos, passando pelos símbolos de Cristo na arte religiosa da Idade Média até as formas circulares e quadradas da pintura abstrata do início do século XX. A dra. Jaffé dedica boa parte de seu estudo à análise das imagens simbólicas em obras de várias artistas modernos, dentre eles dois dos maiores representantes da vanguarda russa, Wassily Kandinsky e Kasimir Malevitch. A ideia de que o objeto significa "mais do que o olho pode perceber", compartilhada por muitos artistas surrealistas como Marcel Duchamp e Giorgio de Chirico, também ganha voz neste capítulo que exalta a dimensão do simbolismo nas artes. A autora observa que o inconsciente na obra de Marc Chagall, presente de uma forma solar, plena de calor e afetividade, é totalmente antagônico ao da obra de De Chirico, com seus dilemas metafísicos. Nesse estudo são também mencionados Max Ernst, Paul Klee e Jackson Pollock, entre outros grandes artistas do século XX que procuraram dar forma visível à "vida que existe por trás das coisas".

Belíssima obra de Wassily Kankinsky.

Obra de Marc Chagall, rica em imagens simbólicas.

O quinto e último capítulo da obra, 'Símbolos em uma Análise Individual', foi escrito pelo dr. Jolande Jacobi, que é, depois de Jung, o autor com maior número de publicações do círculo junguiano de Zurique. Como o próprio título indica, o dr. Jacobi relata, em seu estudo, o processo terapêutico de um paciente, um engenheiro de 25 anos a quem chamou de "Henry", por meio da análise de diversos sonhos do jovem.

Com uma linguagem absolutamente acessível até para quem não tiver formação em psicologia ou psicanálise, o livro nos proporciona, em suma, um mergulho fascinante nos meandros do inconsciente por meio de sua carga simbólica. O mais intrigante é que, apesar de ter sido publicada há exatos cinquenta anos, a obra revela-se incrivelmente atual. Impossível não vincular várias das explicações ali descritas acerca dos símbolos e das reações humanas a fatos da nossa contemporaneidade. Por isso, é recomendadíssima a todos que não apenas apreciam psicologia, mas também buscam novos caminhos para o autoconhecimento.

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segunda-feira, 25 de agosto de 2014

'Bistrô Romantique'. Um cardápio de dores de amor para todos os gostos.

Já ouvi falarem bem e mal de 'Bistrô Romantique', produção belga que acabou de estrear nos cinemas de Sampa. Alguns criticaram os clichês, outros disseram que a ideia foi melhor que a execução, enfim... o que posso dizer é que eu, no entanto, gostei. É um filme para a gente assistir sem compromisso e que prende a atenção ao relatar os dramas amorosos dos casais que jantam em um restaurante no Dia dos Namorados.

O restaurante, ou bistrô, pertence aos irmãos Pascaline e Angelo. Ela administra a casa com mão de ferro e ele é o chef. Angelo tem uma filha pré-adolescente muito afeiçoada à tia e Pascaline é uma solitária mulher de meia-idade. Para subirem na vida, ambos trabalharam arduamente. E naquela noite, preparam um menu especial para o Dia dos Namorados.

O chef Angelo (Axel Daeseleire) em ação.

O que Pascaline jamais poderia prever é que o primeiro cliente da noite seria justamente um namorado da juventude que a havia abandonado grávida e que ela não via há mais de vinte anos. O homem aparece sozinho para vê-la, sem reserva, e a tira dos eixos. Na sequência, começam a chegar os outros clientes que haviam reservado mesas e ficamos conhecendo suas histórias.

Pascaline (Sara de Roo) conversa com o ex-namorado Frank, que chegou do nada (Koen De Bouw).

Em uma das mesas estão os Roos, um próspero casal de meia-idade. O homem é um autocentrado, deselegante – e chato – vendedor de automóveis que fica atendendo o celular à mesa o tempo todo e só sabe falar de trabalho em plena comemoração de Dia dos Namorados. Um verdadeiro "mala", por assim dizer. Até que a mulher, farta, lhe revela que tem um amante. Bingo.

Em uma das mesas está Mia, uma jovem sensível e solitária que é dona de uma loja de chocolates e não consegue superar a perda do namorado que a trocou pela melhor amiga sete anos antes e que, naquele mesmo local, havia-lhe feito juras de amor com uma aliança. Enquanto aguarda os pratos, Mia fica comendo bombons compulsivamente, até que atrai a atenção do garçom Lesley.

Em primeiro plano está Mia (Ruth Becquart), a jovem de coração partido, logo atrás vemos o casal Roos (Barbara Sarafien
e Filip Peeters)
e, ao fundo, Pascaline em pé e Frank (o ex-namorado) sentado.

O garçom Lesley (Wouter Hendrickx) fica intrigado com a moça triste que não para de devorar bombons e puxa conversa.

Em outra mesa está mais um solitário, o tímido geólogo Walter, que havia marcado um encontro com uma jovem desconhecida pela Internet. Quando a mulher chega, uma loira alta, atraente e voluptuosa que fica atraída pelo homem desajeitado e sem-graça, imediatamente pensamos haver algo errado. E há mesmo. Mas isso você vai descobrir ao assistir ao filme.

A loira que deixa Walter (Mathijs Scheepers) embasbacado... aí tem!

Paralelamente às histórias amorosas dos clientes, desenrolam-se os conflitos entre os dois irmãos proprietários do restaurante até eles desembocarem em uma verdadeira "lavagem de roupa suja", ou melhor, de "panelas sujas".

Não há como não sentirmos empatia pelos personagens e seus dramas que, em alguns momentos, até provocam risadas. Tudo bem que algumas situações às vezes pareçam forçadas, mas isso não prejudica esse simpático filme europeu que diverte com leveza e sem grandes pretensões. Recomendo! 

'BISTRÔ ROMANTIQUE' está em cartaz no Caixa Belas Artes e no Espaço Itaú de Cinema - Augusta e Pompéia.

Ficha técnica parcial

Diretor: Joel Vanhoebrouck
  
Elenco: Sara de Roo (Pascaline), Axel Daeseleire (Angelo), Zoe Thielemans (Emma, filha de Angelo), Koen De Bouw (Frank, o antigo namorado de Pascaline), Barbara Sarafian e Filip Peeters (casal Roos), Ruth Becquart (Mia), Wouter Hendrickx (Lesley), Mathijs Scheepers (Walter), Anemone Valcke (Ingrid, uma ajudante de cozinha) e outros.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

'O melhor lance'. Arte e suspense pela ótica do diretor de 'Cinema Paradiso'.

Quando a gente ouve falar em Giuseppe Tornatore, não há como não associar seu nome ao inesquecível 'Cinema Paradiso', maior sucesso do diretor italiano. Por isso, quando soube que um filme chamado 'O Melhor Lance' ('La Migliore Offerta') estava em cartaz por aqui, duas coisas me chamaram a atenção. Primeira: ele é ambientado no universo dos leilões de arte. Segunda: a direção é de Tornatore, um aval de que o filme seria no mínimo bom. Como realmente é. Não vou dizer que seja excepcional, porque estaria mentindo, mas é um filme interessante, embora um tanto fantasioso e em certa medida previsível – pelo menos o foi para mim. Curiosidade: embora seja italiano, o filme é falado em inglês.

Desta vez, Tornatore não criou uma obra lacrimosa como 'Cinema Paradiso', mas um suspense estrelado pelo ótimo ator australiano Geoffrey Rush, que fez o papel do terapeuta no sucesso 'O Discurso do Rei'. Rush interpreta Virgil Oldman, um homem elegante e solitário, respeitado especialista em arte e leiloeiro que não é exatamente um poço de integridade. Virgil manipula os valores das obras nos leilões sob seu comando com a cumplicidade de Billy Whistler, um artista frustrado interpretado por Donald Sutherland que se senta na plateia fingindo ser um comprador e, com seus lances fictícios, manipula o valor das obras de arte.

O leiloeiro Virgil Oldman (Geoffrey Rush) almoça sozinho no luxuoso restaurante, sempre usando suas luvas.

Virgil em ação em um de seus leilões.

O artista frustrado Billy Whistler (Donald Sutherland) é parceiro de Virgil em jogadas pouco honestas no mercado de arte.

O leiloeiro não tem vida social e não gosta do contato com outras pessoas, chegando até mesmo a usar luvas para evitar tocá-las. Seu maior prazer é contemplar uma magnífica coleção de retratos femininos pintados através dos séculos, um verdadeiro tesouro que amealhou ao longo da vida e preserva nas paredes de um imenso salão-cofre de seu luxuoso apartamento.

Virgil mostra a Claire (Sylbia Hoecks) a magnífica coleção de retratos femininos que amealhou ao longo da vida.

O mistério começa quando uma jovem e misteriosa herdeira chamada Claire Ibbetson (Sylvia Hoecks) faz questão de contratar Virgil para avaliar e vender o espólio de seus pais, que se encontra em uma enorme e decadente mansão. Após um contato inicial por telefone, a moça marca vários encontros com o especialista, mas nunca aparece. Cada vez ela dá uma desculpa diferente, até Virgil descobrir que ela supostamente sofre de agorafobia – medo de espaços abertos e do contato com outras pessoas - desde os quinze anos de idade. A moça vive reclusa em um dos quartos da mansão e Virgil só consegue se comunicar com ela pelo buraco da fechadura e por um sistema de autofalante, o que é, no mínimo, esquisito.

A jovem herdeira Claire Ibbetson em sua mansão.

Para aumentar o mistério, a cada visita à mansão para realizar o trabalho com sua equipe, Virgil encontra uma diferente peça de metal que parece pertencer a uma rara engrenagem - e vai roubando-as, uma a uma, para que seu amigo mecânico Robert (Jim Sturgess) possa montá-las. Por fim, ambos descobrem que as peças pertencem a um antiquíssimo e estranho tipo de autômato.

Virgil e o mecânico Robert (Uim Sturgess) na loja onde este conserta engenhocas e monta o robô com as peças que Virgil achou na mansão.

Enquanto isso, Virgil vai ficando cada vez mais obcecado pela herdeira que não conhece – Claire - até o momento que, por fim, acaba por encontrá-la e apaixona-se perdidamente. Aparentemente, ele é correspondido e faz de tudo para conquistar aquela que é, na realidade, a primeira mulher de sua vida. O que começa a acontecer a partir daí, no entanto, gradualmente vai deixando de ser surpresa. Quando tudo parece ir bem demais, às mil maravilhas, é óbvio que algo de terrível está para acontecer e macular a felicidade do protagonista. Tornatore mostra que, a exemplo das obras de arte, sentimentos também podem ser falsificados para servirem a determinado fim. 

Embora o filme soe meio superficial às vezes, vale a pena assistir, sobretudo se você gosta de arte. Vale pelos ambientes, pela direção e pela elegância do protagonista Geoffrey Rush, que tem uma atuação impecável. 'O Melhor Lance' atualmente está em cartaz somente no cine Reserva Cultural. Foi lá mesmo que eu assisti, e inclusive cheguei mais cedo para tomar um café no delicioso Pain de France. Fica a dica!

Ficha técnica parcial

Direção: Giuseppe Tornatore
Elenco: Geoffrey Rush, Donald Sutherland, Sylvia Hoeks, Jim Sturgess e outros.
Duração: 131 minutos