sábado, 25 de outubro de 2014

31ª Bienal de Artes de São Paulo: como falar de uma arte que não existe.

Em dois anos tudo pode piorar. Não, não estou falando da crise de abastecimento de água em São Paulo. Tampouco estou me referindo ao trânsito cada vez mais caótico dessa cidade insana. Estou falando de arte, mesmo. Mais precisamente, da 31ª Bienal de Artes de São Paulo, cuja temática é, sintomaticamente, 'Como (...) coisas que não existem'. Assim mesmo, com esses parênteses no meio. Só que, para mim, o que não existe por lá é arte. Soa polêmico? Sim, naturalmente. Mas cada um tem o direito de emitir sua opinião, e é disso mesmo que vou falar.

Foto: Simone Catto
Dois anos atrás, escrevi uma resenha neste blog sobre a edição anterior desse importante evento das artes que a cidade de São Paulo sedia desde 1951 e que está entre os mais respeitados do mundo. Na ocasião, em 2012, questionei seriamente se tudo o que havia visto e presenciado no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, poderia ser classificado como arte, ou se boa parte das obras lá expostas não constituiriam tão somente meras expressões da individualidade de um sujeito. Mesmo assim, naquele ano algumas obras chamaram minha atenção pela forma criativa, bela ou pungente como transmitiam uma ideia ou propósito.

Desta vez, no entanto, saí da 31ª edição da Bienal com a sensação de ter presenciado um grande engodo. É triste, mas é verdade. Mentir para quê? Posso dizer, com todas as letras, que não vi uma só obra que tivesse me impactado de maneira positiva ou significativa, mesmo que fosse para transmitir um protesto, uma mensagem política ou uma catástrofe. Sim, porque coisas feias podem ser ditas de formas bonitas. Ou, melhor dizendo, podem conter uma estética peculiar que impacta o receptor de alguma forma. No caso da 31ª Bienal, essa estética poderia ser traduzida, por exemplo, em obras realizadas com materiais criativos ou inusitados e/ou dispostos em uma composição curiosa ou visualmente interessante. Tudo o que não vi por lá. E vale ressaltar que essa percepção não foi só minha, os amigos que me acompanharam na visita sentiram o mesmo. Foi impossível não notar, inclusive, a quantidade de espaços vazios no Pavilhão. De cara, deu para sentir que o número de obras expostas é bem inferior ao da edição de 2012, o que foi corroborado no momento em que fui comparar os dados dessas duas últimas Bienais: a de 2012 teve 3.000 mil obras de 111 artistas. E esta tem cerca de 250 obras pertencentes a 82 projetos de criação individual ou coletiva.

E assim se fez o vazio... cadê as obras que deveriam estar aqui? - Foto: Simone Catto

Segundo o principal curador desta edição, o escocês Charles Escher, "esta não é uma Bienal fundada em objetos de arte, mas em pessoas que trabalham com pessoas que, por sua vez, trabalham em projetos colaborativos com outros indivíduos e grupos...". Ora, se o próprio curador afirma que "esta não é uma Bienal fundada em objetos de arte", certamente não estou errada ao dizer que não vi arte por lá, correto? E qual o objetivo desses projetos aos quais ele se refere? Retratar as diversas "convulsões" que ocorrem agora pelo mundo, seja no âmbito social, cultural, político ou religioso. Vamos convir que convulsões é o que mais existe em nosso conturbado planeta. Sobretudo porque atualmente somos muito mais bem-informados sobre o que ocorre em qualquer parte. No entanto, repito, na mostra não há uma só obra - ou "projeto" - que, a meu ver, transmita o impacto de quaisquer dessas convulsões de forma criativa.

Foto: Simone Catto
Para começar, o que mais se vê na 31ª Bienal são vídeos. Sim, eles proliferam de forma assombrosa a cada edição do evento. Há vídeos de tudo quanto é tipo. Alguns retratam experimentos de artistas, outros protestam contra a injustiça sofrida por determinados povos, outros denunciam catástrofes ambientais, e por aí vai. Ocorre que não é de agora que questiono a adequação do formato "vídeo" para uma exposição de arte. Posso até ser chamada de herege por alguns, mas vídeos a gente assiste no conforto do lar ou diante de uma tela de cinema. Até por uma questão de comodidade. Aliás, toda vez que entro em uma daquelas salas escuras da Bienal para assistir a um vídeo em pé, minha pressão cai e fico zonza. Meus amigos são testemunhas! E tem outra: grande parte dos vídeos que são exibidos por lá poderiam ser classificados tranquilamente como documentários. E é inegável que documentários são muito melhor assimilados se visualizados em um lugar apropriado para isso. É o caso do filme 'A Família do Capitão Gervásio', do dinamarquês Kasper Akhøj (1976) e da mineira Tamar Guimarães (1967), que retrata as atividades e sessões de cura dos médiuns do Centro Espírita Luz da Verdade, na cidadezinha de Palmelo, interior de Goiás. Outro exemplo é o filme 'Cabine Telefônica Aberta', da turca Nilbar Güreş (1977), que mostra o drama dos habitantes da cidade de Bingöl, no Curdistão, onde vive parte da família da artista. Pertencentes às minorias curda e alevita, os habitantes locais são fortemente discriminados pelo governo central, que lhes nega acesso à infraestrutura mais básica, como os serviços de telefonia. No vídeo, a artista registra as soluções criativas do povo para contornar as dificuldades diárias. É uma denúncia? Sim, sem dúvida. É válido denunciar? Naturalmente. Mas... é arte? Para mim, não. É um documentário criativo. E ponto. 

Mesmo assim, consegui assistir a um vídeo do início ao fim: 'Inferno', da israelense Yael Bartana (1977), que simulou a destruição, por alguma espécie de cataclisma, da réplica do 'Templo de Salomão' construído em São Paulo pela Igreja Universal do Reino de Deus. O templo paulistano, um monumento ao mau-gosto e à megalomania que se pretende uma "reconstrução" da construção bíblica homônima da qual restou hoje o Muro das Lamentações, em Israel, foi erigido com materiais vindos diretamente daquele país e custou centenas de milhões de dólares, gerando boa dose de polêmica e indignação. Vale destacar que o filme, cujo elenco inclui vários figurantes anônimos, tem efeitos especiais bem inferiores àqueles aos quais estamos habituados no cinema, sobretudo no momento da catástrofe. Contudo, se o objetivo é protestar contra a ostentação cafona, a manipulação para fins mercantis e a ingenuidade de boa parte do povo brasileiro, OK, está valendo. Porém, de novo pergunto: é arte? Bem... você, o que acha?

E a vertente "documental" não fica só nos vídeos. Obras como 'A última aventura: Transamazônica', da jovem artista gaúcha Romy Pocztaruk (1983), estão aí para provar. Trata-se de um conjunto de fotos do entorno da Rodovia Transamazônica, um monstro inacabado de 4.000 km concebido durante a ditadura militar para cruzar o país de leste a oeste. Durante um mês, em 2011, a artista percorreu parte do trajeto da rodovia e registrou imagens do que sobrou, bem como os vilarejos que nasceram em seu rastro. Valeu enquanto registro fotográfico e curiosidade histórico-sociológica.

Romy Pocztaruk - 'A Última Aventura: Transamazônica' (2011) - Foto: Simone Catto

Romy Pocztaruk - 'A Última Aventura: Transamazônica' (2011) - Foto: Simone Catto

A primeira obra com que me deparei, tão logo cheguei à exposição, é o conjunto de imensas pinturas murais do paraense Eder Oliveira (1983), que nos impactam de imediato ao subirmos a rampa de acesso ao primeiro andar. São retratos de homens envolvidos em crimes e retirados das páginas da imprensa sensacionalista paraense, em sua maioria caboclos com traços negros e indígenas. O trabalho é uma denúncia social contra a discriminação desses seres excluídos, mas as imagens, que em seu contexto original estão espalhadas pelos muros de Belém, perderam muito de sua força ao ser transpostas para as paredes frias da Bienal. Uma coisa é a gente topar com uma pintura dessas andando pelas ruas, e outra é encontrá-la em um espaço fechado: descontextualizadas, elas perdem o sentido. Porque é fato que determinadas obras de arte estão indissociavelmente vinculadas ao espaço onde se encontram – sobretudo trabalhos de street art, como é o caso deste aqui.

O excluídos do paraense Eder Oliveira em pintura mural (2014) - Foto: Simone Catto

E aqui, uma das pinturas em seu contexto original: muito mais força e sentido! - Foto: www.31bienal.org.br

Em determinado momento, encontrei um dos projetos coletivos mencionados pelo curador: 'Dios es marica' ('Deus é bicha'). Organizado por Miguel A. López, o projeto reúne obras criadas entre o fim dos anos 70 e o fim dos anos 80 por quatro artistas de língua espanhola, cada um de uma nacionalidade: Nahum Zenil (1947), do México; Ocaña (1947-1983), da Catalunha – Espanha; Sergio Zevallos (1962), do Grupo Chaclacayo – Peru; e a dupla Yeguas del Apocalipsis (Pedro Lemebel - 1955 e Francisco Casas - 1959), do Chile. Vemos, então, pinturas, fotografias e vídeos de performances que empregam, segundo os curadores, "a teatralização do gênero, o travestismo e a paródia de imagens associadas à religião e à história cultural e política (...) em contextos que enfrentavam fortes crises econômicas, violência social, ditaduras e/ou processos de transição democrática". Em todas as obras há alguma forma de afronta sexual de cunho religioso. Ora, se o objetivo era pretensamente político, como indica o texto dos curadores, por que somente a Igreja foi atacada? Isso até faria algum sentido – apesar do mau gosto explícito - se a intenção do grupo fosse unicamente protestar contra a hipocrisia sexual do Catolicismo ou de outras religiões. Com objetivos diluídos e uma proposta vazia de um real significado, no entanto, parece-me que o único fim que esse grupo pretendeu foi chocar por chocar, não importa por quais meios fossem – e em minha opinião, o fez da forma mais rasteira possível.

Coletivo de Arte Yeguas del Apocalipsis (Pedro Lemebel e Francisco Casas) - 'Las dos Fridas' (1989-2014),
 em fotografia de Pedro Marinello - Foto: Simone Catto

A instalação 'Martírio', do maranhense Thiago Martins de Melo, é mais uma obra de protesto, desta vez contra a economia de exploração que prevalece na Amazônia desde os tempos do descobrimento. O artista mescla a pintura de alegorias com a escultura em um conjunto colorido e rebuscado para homenagear os "mártires amazônicos", isto é, "centenas de trabalhadores e líderes comunitários que morreram anonimamente na luta pela defesa da terra". Já vi isso antes, provavelmente em outras Bienais.

Thiago Martins de Melo - 'Martírio' (2014) - Foto: Simone Catto

Diante de tudo o que vivenciei, permaneceu a sensação de que a tal intenção de "protesto" político-social caiu no vácuo. Trata-se de uma Bienal pobre de recursos e absolutamente anêmica de ideias e criatividade que deve estar gerando protestos é no público visitante, isso sim. Que saudades das Bienais de verdade!

Em tempo: parece que o descaso da curadoria e dos organizadores atingiu inclusive o site oficial dessa 31ª Bienal (www.31bienal.org.br), já que lá eles sequer tiveram o cuidado de fornecer os dados biográficos mais básicos dos artistas, como a data de nascimento, a nacionalidade e eventuais informações relevantes. Que feio.

Quer arriscar? A 31ª BIENAL DE SÃO PAULO está no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, Parque do Ibirapuera, e tem entrada franca. Abre às terças, quintas, sextas, domingos e feriados das 9h às 19h, e quartas e sábados das 9h às 22h. Até 7/12.

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