sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Rembrandt. O mestre da expressão que Caravaggio deu à luz.

No dia 6 de dezembro de 2014, assisti àquela que talvez tenha sido a última aula de história da arte ministrada pelo professor Renato Brolezzi no MASP. Isto porque a administração do museu mudou e ainda é uma incógnita se as excelentes e lotadíssimas aulas do mestre, tantas vezes mencionadas em posts deste blog, terão continuidade em 2015. Vamos torcer para que sim!

O tema da aula derradeira foi o grande mestre da luz do século XVII na Holanda: Rembrandt Harmenszoon van Rijn (1606-1669). Uma curiosidade: a tradução de seu nome significa "Rembrandt, Filho de Harmens do Rio Reno". Achou estranho? Eu também! Ocorre que, na época, só a aristocracia tinha sobrenome. Não era o caso de nosso artista, cujo pai era moleiro e a mãe padeira.

Rembrandt nasceu em Leiden, segunda cidade mais importante dos Países Baixos e um importante centro universitário. Tinha mais oito irmãos. Apesar da origem modesta, conseguiu estudar na universidade, mas, nove meses depois, decidiu tornar-se artista e abandonou o curso. Seu primeiro mestre foi Pieter Lastman, grande estudioso de Caravaggio, o que deve explicar, e muito, a maestria de Rembrandt no manejo da luz.

Rembrandt - Autorretrato jovem (c. 1628) - Rijksmuseum, Amsterdã

A primeira obra abordada na aula foi, como sempre, uma pintura do acervo do MASP: 'Autorretrato com Corrente de Ouro' (c.1636) ou ‘Retrato de Jovem com Corrente de Ouro'.

Rembrandt - Autorretrato com corrente de ouro (c. 1636) - MASP

A respeito da pintura, vale ressaltar que, em 1972, quando foi concluído o 'Rembrandt Project Program' - um grande projeto de catalogação da obra do artista – foram levantadas dúvidas sobre a autenticidade da obra. De qualquer modo, mesmo que ela não seja da autoria do mestre, possui a sua poética e características próprias da cultura da época.

Nessa pintura, Rembrandt vivia uma fase de prosperidade financeira, o que fica patente não apenas na corrente de ouro que dá título ao quadro, mas também em seu rico traje, que possui detalhes em pele. Vale ressaltar que este era um retrato privado, para ser exposto em casa, e não publicamente - a ostentação de riqueza era condenada nos Países Baixos, que seguiam os preceitos austeros do Calvinismo. O ouro, à época, simbolizava a conquista da nobreza e da eternidade. Como não era aristocrata, Rembrandt não herdou a corrente de ouro - ele a conquistou com o esforço de seu trabalho. 

O professor Brolezzi chamou atenção também para a força do olhar do mestre que, ao mesmo tempo, revela e esconde as paixões. Dá para notar uma diagonal de luz que atravessa a pintura do alto, à esquerda, para baixo. Um outro fato interessante é que um raio X do quadro revelou não haver traços de desenho na tela, mas grandes pinceladas ou empastamentos de cor, ao modo dos venezianos.

Sabemos, aliás, que Rembrandt admirava mestres como Ticiano, no qual se inspirou claramente ao fazer o autorretrato abaixo, pintado no auge de sua carreira. Note que a pose do retratado é a mesma em ambos os quadros. A forma triangular na pintura de Rembrandt era típica dos renascentistas, evocando a ideia de uma ordem e equilíbrio cósmicos. Curiosamente, Rembrandt assinou e inseriu o ano no quadro, o que era raro na época. Essa prática só seria adotada mais tarde, no século XIX.

Ticiano - Retrato de Ludovico Ariosto (1536)

Rembrandt - Autorretrato (1640)

Em 1631, o artista foi para Amsterdã. Entre 1633 e 1634, pintou mais de 50 retratos da alta burguesia da cidade e mais de 48 autorretratos. No século XVII, naturalmente, não existia fotografia, e os retratos de então podem ser vistos como uma tentativa de enganar o tempo e a morte, de deixar um vestígio de si no mundo. De forma geral, o retrato holandês era austero, mas os de Rembrandt tinham um caráter mais vaporoso devido ao tratamento que ele dava à luz.

No mesmo ano em que foi para Amsterdã, o artista pintou o primeiro retrato de alguém que não fosse de sua família e pelo qual foi remunerado. Trata-se do Retrato de Nicolaes Ruts, um rico mercador que fazia negócios com a Rússia. O homem segura uma espécie de papel ou documento, um ícone inserido propositalmente para indicar sua atividade profissional. Os contrastes de cor e a variedade de texturas dos trajes eram típicos da fase inicial de Rembrandt.

Rembrandt - Retrato de Nicolaes Ruts (1631) - Frick Collection, NY

E foi assim, pintando retratos dos ricos burgueses, que Rembrandt tornou-se o artista mais famoso dos Países Baixos e ganhou muito dinheiro. Em 1634, casou-se com Saskia van Uylenburgh, prima do grande marchand da época e agenciador de sua carreira: Hendrick van Uylenburgh. Teve seis filhos, mas só um, Titus, sobreviveu.

Rembrandt - Lição de Anatomia do Dr. Tul (1632)

Note os maravilhosos contrastes de luz e sombra na pintura a seguir! 

Rembrandt - O Filósofo em Meditação (1632)

No retrato abaixo que fez de Saskia, vemos novamente a luz na diagonal. Ela tem um colar de pérolas, símbolo inconteste de pujança e nobreza.

Rembrandt - Retrato de Saskia (1633) - Rijskmuseum, Amsterdã

No próximo autorretrato, onde está ao lado de Saskia, Rembrandt e a esposa mostram uma alegria escandalosa em meio a sinais de riqueza, como grandes taças de champanhe. Para os italianos, tal exibição da vida privada seria considerada uma aberração.

Rembrandt - Autorretrato com Saskia (1635)

E abaixo, um tema também visitado por Caravaggio.

Rembrandt - O Sacrifício de Isaac (1635)

Em 1642, Rembrandt pintou A Ronda Noturna, uma obra que intriga os pesquisadores devido à figura de amarelo que aparece entre os soldados, uma mulher com luz quase sobrenatural. Segundo alguns, essa mulher seria Saskia, a esposa que Rembrandt perdeu no mesmo ano. Essa pintura tem muitas histórias: em 1975 sofreu um atentado a faca e, dez anos depois, uma mulher borrifou-o com ácido, tendo sido entregue ao público após oito anos de restauro. Pobre Rembrandt!

Rembrandt - A Ronda Noturna (1642) - Rijksmuseum, Amsterdã

Após o falecimento da esposa, Rembrandt tornou-se amante da antiga governanta, Hendrickje Stoffels, e teve um filho com ela. Foi ela a modelo da pintura a seguir.

Rembrandt - Mulher tomando banho em uma corrente (1654)

Rembrandt - Retrato de Hendrickje Stoffels (c. 1656)

No autorretrato a seguir, vemos Rembrandt mais gordo, vestido de amarelo. Vale ressaltar que, àquela época, robustez era sinal de prosperidade, de que se comia carne, alimento dos ricos. Também aqui a forma triangular está presente, trasmitindo uma impressão de equilíbrio.

Rembrandt - Autorretrato (1658) - Frick Collection, NY

A essa altura da vida, o artista já estava empobrecido. Seus retratos saíram de moda, seus discípulos começaram a disputar compradores, suas encomendas rarearam e seu marchand o abandonou. Até que Rembrandt perdeu seu palacete e, por volta de 1650, foi obrigado a vender sua coleção de arte para pagar as dívidas. Repare no olhar tristonho e envelhecido do mestre no autorretrato abaixo. Note, também, que no período maduro suas pinceladas ficaram mais fragmentadas, mais próximas de um esboço.

Rembrandt - Autorretrato como o Apóstolo Paulo (1661)

Na pintura abaixo, de um casal judeu, a noiva estava grávida.

Rembrandt - Isaac e Rebeca ou Os Noivos Judeus (entre 1665-1669) - Rijksmuseum

O último autorretrato, em 1669, foi pintado na Colônia, Alemanha. Rembrandt estava pobre, esquecido, muito doente, mas, ironicamente... sorri! Qual será o significado
desse sorriso? Estaria ele, no final da vida, rindo de si mesmo e das armadilhas que o destino lhe preparou? E aquele perfil misterioso à esquerda, de quem seria?

Rembrandt - Último Autorretrato (1669)

Após anos de esquecimento, a obra de Rembrandt seria recuperada somente no século XIX, por franceses como Delacroix e Manet. Extremamente prolífico, o mestre tem mais de 560 pinturas e 800 gravuras catalogadas - sim, ele também era um grande gravador! Portanto, aqui você tem uma ínfima, muito ínfima, amostra do que o mestre holandês era capaz.

Nenhum comentário:

Postar um comentário