domingo, 26 de julho de 2015

'Portinari e a Poética da Modernidade Brasileira': um tesouro a ser descoberto.

No sábado passado fui ver a exposição 'Portinari e a Poética da Modernidade Brasileira', na Galeria Almeida e Dale, nos Jardins, e notei que quase não havia visitantes. Perguntei-me como a mostra de um artista da categoria de Portinari (1903-1962), com 35 obras de alto nível e ainda por cima com entrada franca, poderia estar vazia. Ainda mais se levarmos em conta que todas as obras expostas pertencem a coleções particulares, longe dos olhos do público, e essa é uma rara oportunidade para contemplá-las. Estão lá pinturas do acervo de importantes colecionadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Fortaleza e de instituições como a Coleção Roberto Marinho.

Quando cheguei, um grupo de pessoas estava saindo e ninguém mais entrou. Ou seja: nos quase 60 minutos em que lá permaneci tive todo o espaço da ampla galeria só para mim, com suas três salas de exibição e 35 magníficas pinturas de Portinari a meus pés, para meu completo deleite e fruição.

A galeria vazia... Em primeiro  plano, está a exuberante e icônica obra 'Flora e Fauna Brasileira', de 1934.
Óleo s/ madeira - Coleção Roberto Marinho - RJ - foto: Simone Catto

Outro ângulo da galeria que era "só minha". Em primeiro plano, as obras 'Jangada e Carcaça' e 'Bois e Espantalho', ambas de 1940, nas quais o artista retrata o drama da seca em cores escaldantes. Foto: Simone Catto

É realmente uma delícia apreciar obras de arte em um espaço vazio, mas, por outro lado, pergunto-me por que a exposição não estava lotada. Não creio que seja por falta de divulgação, pois a mostra consta nos roteiros culturais de jornais e revistas, inclusive com matérias e notas explicativas. Será falta de hábito da população de visitar galerias? Será que as mesmas pessoas que visitam exposições como a de Kandinsky, no CCBB, ou a de Miró, no Instituto Tomie Ohtake, sentem-se intimidadas em entrar numa galeria de arte? Francamente, não sei.

Só sei que a mostra de Portinari está excelente e é uma pena que o público apreciador de arte ainda não a tenha descoberto. Com curadoria de Denise Mattar, ela abrange obras do período de 1931 a 1944 do mestre, momento em que ele surge na cena modernista e se consolida como o maior pintor brasileiro.

Além das belas obras mostradas, a exposição tem providenciais textos explicativos em uma vitrine de vidro onde são explicadas, de forma clara e didática, todas as fases da vida do mestre. Não vou me ater a cada uma delas para não me alongar muito, mas posso dizer que o talento de Portinari para o desenho se revelou muito cedo. Com apenas 10 anos de idade, ele pintou um retrato do compositor Carlos Gomes que impressiona pela técnica e precisão.

Ao centro, a vitrine com textos explicativos da vida do artista, acompanhados de imagens - Foto: Simone Catto

Retrato de Carlos Gomes (1913) - nem parece que foi feito por uma criança!
Foto: Simone Catto

Em 1919, Portinari ingressou no Liceu de Artes e Ofícios e na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. A partir dali, sua técnica deslanchou. O artista participou de diversas exposições, ganhou uma viagem à Europa como prêmio e retornou ao Brasil em 1931, casado com Maria Victoria Martinelli, uma uruguaia de 19 anos que conheceu em Paris e que seria sua companheira por toda a vida. Nesse mesmo ano, ele participou do 'Salão Revolucionário', que iria marcá-lo como um pintor moderno.

Tudo começou quando, em 1931, o arquiteto Lúcio Costa foi indicado como diretor da Escola Nacional de Belas-Artes (ENBA), no Rio de Janeiro. Jovem e cheio de ideias, ele quis mudar a estrutura do Salão realizado pela escola todos os anos e convidou uma turma "da pesada" para compor a Comissão Organizadora: Portinari, Manuel Bandeira, Anita Malfatti e Celso Antônio. Entre os expositores, estavam todos os modernistas: Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Di Cavalcanti, entre outros, além do próprio Portinari, que expôs 17 obras. Conclusão: a XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes chocou a ultraconservadora escola e Lúcio Costa foi demitido. Daí essa mostra ficar conhecida como 'Salão Revolucionário' foi um passo. Foi lá que Portinari surgiu como um artista moderno, chamando a atenção de Mário de Andrade, que pediu para ser apresentado a ele. Esse encontro do pintor com o escritor muito contribuiu para que Portinari resolvesse retratar o brasileiro em suas obras, e os dois homens tornaram-se amigos para sempre.

A pintura abaixo, O Violinista (1931), foi considerada por Mário de Andrade a melhor obra do Salão Revolucionário de 1931.

'O Violinista' (1931) - coleção particular - RJ - Foto: Divulgação/Galeria Almeida e Dale

Esta obra também foi exibida no Salão Revolucionário: 'Retrato do Maestro Oscar
Lorenzo Fernández'
(1931) - óleo s/ tela - coleção particular - RJ - Foto: Simone Catto
  
Flora e Fauna Brasileira (1934) - óleo s/ madeira - Coleção Roberto Marinho - RJ. Pura exuberância!
Foto: Simone Catto

As obras abaixo, Flautista e Domingo no Morro, marcam o momento em que o artista começa a retratar o povo brasileiro.

'Flautista' (1934) - óleo s/ madeira - coleção particular - RJ - Foto: Simone Catto

'Domingo no Morro' (1935) - óleo s/ tela - coleção particular - SP - Foto: Simone Catto

'Mulher e Criança' (1936) - óleo s/ tela - Coleção Ronaldo Cezar Coelho - SP
Foto: Simone Catto

'Jangadas' (1939) - óleo s/ tela - coleção particular - SP - Foto: Simone Catto

João Candido, filho de Portinari e Maria, nasceu em 1939 - Foto: Simone Catto

Após expôr no Salão Revolucionário, Portinari trabalhou, lecionou e participou de mais exposições, inclusive internacionais. Em 8 de outubro de 1940, o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) inaugurou a exposição 'Portinari of Brazil' com 186 obras do mestre, incluindo telas que ele havia exibido em agosto do mesmo ano no Instituto de Artes de Detroit. Detalhe importante: Portinari foi o segundo artista estrangeiro convidado a expor no MoMA após Picasso.

Essa mostra foi posteriormente desmembrada em exposições itinerantes que percorreram diversas cidades americanas até 1942. Na ocasião, Edward Allen Jewell, do New York Times, afirmou: "Portinari é um pintor perfeito, muitas vezes brilhante, muitas vezes impressionantemente poderoso…" Na mesma época, a Universidade de Chicago editou o álbum 'Portinari, his Life and Art' e o artista realizou uma exposição individual na Universidade de Howard, Washington.

A obra a seguir, As Moças de Arcozelo (1940), ilustrou a capa do catálogo da exposição 'Portinari of Brazil', no MoMA, em 1940.

'As Moças de Arcozelo' (1940) - óleo s/ tela - coleção Marcos Ribeiro Simon - SP - Foto: Simone Catto

'Três Figuras Femininas' (1940) - óleo s/ tela - coleção particular - CE - Foto: Simone Catto

Na obra 'O Enterro' (1940), um retrato cru do drama da seca, agora em tons lúgubres. Óleo s/ tela - coleção Jones Bergamin - RJ. Foto: Simone Catto

As pinturas abaixo são líricas reminiscências da cidade natal do artista, Brodowski, em São Paulo.

'Meninos soltando Pipas' (1941) - óleo s/ tela - coleção particular - SP - Foto: Simone Catto

'Brodowski' (1942) - óleo s/ tela - Coleção Roberto Marinho - RJ - Foto: Simone Catto

Em1944, foi realizada a Exposição de Arte Moderna, última grande mostra do Modernismo brasileiro. Organizada por Juscelino Kubitschek, então prefeito de Belo Horizonte, ela reuniu, entre outros, os artistas da Semana de 22, do Grupo Santa Helena, do Núcleo Bernardelli e os então iniciantes Iberê Camargo, Milton Dacosta e Scliar. O objetivo era apresentar o complexo arquitetônico da Pampulha, projeto de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, para o qual Portinari fez os azulejos externos e o mural interno da Igreja São Francisco de Assis.

Nesse evento, que mobilizou toda a sociedade mineira, Portinari apresentou seu trabalho O Olho, conhecido como O Galo, causando furor na imprensa e dividindo a cidade entre os "contra" e os "a favor" da obra. Um pouco antes da mostra ser encerrada, oito trabalhos foram cortados a gilete, mas O Galo foi poupado para cantar em outras freguesias. 

A essa altura, Portinari já era um mito. Além de ser considerado o maior artista brasileiro, também tinha conquistado grande reconhecimento no exterior.

A obra que causou escândalo em MInas: O Olho (1944) - óleo s/ tela
Foto: divulgação/Galeria Almeida e Dale)

Após a Exposição de Arte Moderna, Portinari voltou a expor no MoMA, em NY, fez uma exposição em Paris e foi condecorado com a Legião de Honra do governo francês. Devido à perseguição aos comunistas no Brasil, em 1947 se exilou voluntariamente no Uruguai, onde sua família foi encontrá-lo posteriormente. Continuou trabalhando naquele país e retornou ao Brasil em 1949, sempre produzindo intensamente, expondo seu trabalho e sendo reconhecido. O artista inclusive participou da I Bienal de São Paulo, no ano de 1951.

Em meados da década de 50, o mestre infelizmente já estava doente devido ao chumbo presente nas tintas que utilizava e, por determinação médica, ficou um tempo sem pintar. Em 1955, executou os famosos painéis Guerra e Paz, presente do governo brasileiro para a ONU, em Nova York.

Autorretrato (1956) - óleo s/ madeira compensada - coleção particular - SP
Foto: Simone Catto

O fato é que, apesar das recomendações médicas, Portinari nunca parou de trabalhar, vindo a falecer em 6 de fevereiro de 1962, intoxicado pelos metais pesados contidos nas tintas.

Segundo a curadora da exposição, Denise Mattar, "Portinari soube criar um repertório iconográfico nacional a partir de elementos reais e sem exotismos. Inventou uma estética brasileira que fazia conviver a poesia e a contundência da denúncia. E conseguiu aliar essa temática à sua habilidade de exímio artífice, encontrando soluções técnicas sofisticadas e inovadoras."

Você ainda não viu a exposição? Corra! 'PORTINARI E A POÉTICA DA MODERNIDADE BRASILEIRA' fica até 15/8 na Galeria Almeida e Dale, com entrada franca. Rua Caconde, 152 - São Paulo – Tel.: (11) 3882-7120 - www.almeidaedale.com.br

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