sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Alberto da Veiga Guignard: paisagens imaginantes, alegria imaginada.

Confesso que, até pouco tempo, não tinha muita intimidade com a obra de Alberto da Veiga Guignard (Nova Friburgo - RJ, 1896 – Belo Horizonte - MG, 1962). Pintor, professor, desenhista, ilustrador e gravador, ele foi tema da exposição 'Guignard – Memória Plástica do Brasil Moderno', realizada recentemente no MAM-SP. Com curadoria de Paulo Sergio Duarte, a mostra reuniu mais de 70 obras de quatro gêneros diferentes, entre retratos e autorretratos, paisagens e festas, naturezas-mortas e pintura sacra. Deu para perceber que emoções variadas guiaram a mão do artista: temos o Guignard nacionalista, surrealista, modernista e também o Guignard lírico.

Guignard - Sem título (1937) - óleo s/ tela - Coleção Roberto Marinho
Foto: Simone Catto

A formação na Europa

Guignard mudou-se para a Europa ainda criança, em 1907. Após o suicídio do pai, foi viver em Munique com a mãe, que se casara com um barão alemão falido e jogador que dilapidou a fortuna da família, tendo retornado a seu Rio de Janeiro natal apenas em 1929. A julgar por sua biografia, a infância do artista deve ter sido um bocado tumultuada!

Nesses mais de 20 anos que residiu no velho continente, Guignard frequentou, em dois períodos distintos (entre 1917 e 1918 e entre 1921 e 1923), a Königliche Akademie der Bildenden Künste (Real Academia de Belas Artes) de Munique, onde estudou com Hermann Groeber (1865-1935) e Adolf Hengeler (1863-1927). Além disso, estudou com afinco a arte flamenga na Pinacoteca de Munique. 

Entre 1925 e 1928, o artista teve a oportunidade de se aperfeiçoar em Florença, onde se identificou com a obra de Sandro Botticelli (1444/1445-1510) e Raoul Dufy (1877-1953). Foi naquela cidade que se libertou da rigidez acadêmica e marcou sua passagem para o modernismo. Posteriormente, em Paris, ele ainda participou do Salão de Outono.

Seus anos de formação na Europa coincidiram com a década de 20, período privilegiado da história da arte em que nasceram e vicejaram vários movimentos transgressores, de forma que Guignard teve contato com o cubismo, o expressionismo, o dadaísmo e o surrealismo. A atração que o surrealismo exerceu sobre o artista, que conheceu o movimento em 1927 e descreveu-o como seu "caminho para a libertação", segundo um texto autobiográfico, é perceptível em suas "paisagens imaginantes".

Guignard - 'Paisagem Imaginante' (1955) - óleo s/ madeira - coleção particular - RJ
Foto: Simone Catto

As paisagens e festas, aliás, constituíam a temática que eu mais conhecia da obra do artista. Produzidas a partir dos anos 60, as "paisagens imaginantes" se caracterizam pela predominância de fundos verde azulados e acinzentados e elementos que flutuam no espaço. São cenas de festas juninas e paisagens mineiras que reúnem, num mesmo espaço, fogueiras, casebres, pessoas, igrejas e balões que flutuam livres da gravidade, a exemplo do que fazia Marc Chagall em suas festas ciganas, criando imagens oníricas e dotadas de uma aparente ingenuidade.

Guignard - 'Noite de São João' (1961) - óleo s/ madeira - Coleção Roberto Marinho
Foto: Simone Catto

No entanto, ao contrário das paisagens ditas naïve, que normalmente têm um caráter alegremente ingênuo em seu colorido, as paisagens de Guignard possuem uma certa melancolia que um olhar mais atento consegue captar nos fundos sombrios por trás das figuras coloridas em primeiro plano. Esse drama era real e presente, causado pelas vicissitudes que o artista sofreu desde a infância, incluindo a anomalia física denominada como lábio leporino, que o complexou durante toda a vida e atrapalhou sua vida amorosa. Sabe-se que, na tentativa de resolver o problema, ele fez cirurgias corretivas que não foram muito bem-sucedidas. Como se não bastassem os problemas de saúde e de família, Guignard também perdeu sua única irmã, que morreu tuberculosa ainda jovem. E as tragédias não param por aí: o artista foi abandonado pela esposa, a estudante de música alemã Anna Döring, poucos meses após seu casamento em Munique, em fevereiro de 1923.

Guignard - 'Paisagem Imaginante' (1960) - óleo s/ tela - coleção particular - SP - Foto: Simone Catto

O quadríptico 'Paisagem Imaginante' (1959) foi realizado sobre quatro painéis, formando uma espécie de biombo
óleo s/ madeira - coleção particular - Foto: Simone Catto

Um outro aspecto das paisagens de Guignard é a influência da pintura oriental, que ele provavelmente teve a oportunidade de conhecer em suas visitas a museus e palácios na Europa. A "chinoiserie", moda entre artistas europeus que tentavam imitar traços da arte chinesa, exerceu certo impacto em Guignard, com suas transparências e pinceladas diluídas, nas paisagens mineiras coalhadas de igrejas barrocas e fogueiras de São João. Os elementos que parecem flutuar num plano indistinto e meio fora de foco criam um efeito etéreo que os chineses chamam de "montanha d’água".

Guignard - 'Homenagem a Leonardo'  (1959) - Acervo Fundação Maria Luísa e Oscar Americano - SP - Foto: Simone Catto

A influência mais marcante, entretanto, vem de Minas Gerais, onde o artista lecionou e dirigiu o curso livre de desenho e pintura da Escola de Belas Artes, a convite do então governador Juscelino Kubitschek (1902-1976). Naquela ocasião, Guignard se encantou com cidades históricas como Ouro Preto, Sabará e Mariana, e suas igrejas coloniais podem ser vistas em várias paisagens do artista. Guignard mudou-se para Belo Horizonte em 1944 e permaneceu à frente da escola até 1962, quando, em sua homenagem, ela passou a se chamar Escola Guignard. Por lá passou muita gente graúda das artes: nada mais, nada menos que Amilcar de Castro (1920-2002), Farnese de Andrade (1926-1996) e Lygia Clark (1920-1988), entre outros grandes artistas. Os alunos gostavam dele e o consideravam um professor democrático e informal. Não foram poucos os amigos que mencionaram seu bom coração.

Guignard - 'Paisagem Imaginária de Minas' (1947) - óleo s/ madeira - Museu da Inconfidência - Foto: Simone Catto

Guignard - 'Paisagem de Ouro Preto' (1946) - nanquim e aquarela s/ cartão - coleção particular - Foto: Simone Catto

Guignard - 'Paisagem de Sabará' (1950) - óleo s/ madeira - Coleção MASP - Foto: Simone Catto

Apesar de ser querido pelos alunos e amigos, é notório que Guignard padecia de uma solidão profunda e, de certa forma, deslocava seu sofrimento para as paisagens que pintava. Suas festas de São João são tristes, de aspecto sombrio, o oposto de suas naturezas-mortas, que são pura alegria.

Guignard - 'Noite de São João' (1961) - óleo s/ tela - Museu de Arte da Pampulha
Foto: Simone Catto

Guignard - 'Natureza Morta com Vasos de Antúrios' (1952) - óleo s/ tela Coleção Roger Wright
Foto: Simone Catto

Na pintura 'Vaso com flores' (1932), um vaso vermelho está apoiado em uma mesa que flutua sobre uma cidade, tendo ao fundo o céu e as nuvens. Realidade e ficção se misturam e as plantas têm um aspecto surreal, de coloração vibrante, quase lisérgica.

Guignard - 'Vaso com Flores' (1932) - coleção particular - RJ - Foto: Simone Catto

Guignard - 'Vaso com Flores' (1957) - óleo s/ tela - coleção particular - Fortaleza
Foto: Simone Catto

As paisagens e festas constituíram apenas uma das vertentes abordadas na mostra do MAM, mas os retratos e autorretratos também tiveram presença expressiva, ainda mais se considerarmos que as obras desse gênero são as mais numerosas na carreira do artista.

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